sexta-feira, 27 de julho de 2007

Percebes?

Não é uma flor, é uma anémona. Até um economista percebe!
Olha bem, perece-te uma flor? Se te parece, estás bem. Se disseres que não, precisas dum saca-olhos.
Se olhares e disseres logo que é uma anémona é porque não tens um pingo de sensibilidade. Até um economista picuinhas diria que é uma flor! Por amor de Deus! Qualquer um diria que é uma flor, apesar de ser uma anémona!
Se te parece ser uma flor, parece-te bem... estás bem.
Se disseres que não, precisas dum saca-olhos!

O Cavalo em pelota


O Sr. D. Cavallo Duarte Francisco Godofredo Hipólito de Mello Mascarenhas Vasconcellos e Sá de D. José, Cavalo de D. José para os amigos, é um animal nobre, elevado, mas, como é frequente em criaturas da sua estirpe, esconde no armário do passado um ou dois esqueletos cabeludos.

Em 1745, imbuído dos ideais iluministas abandona o país para se alistar no exército de Frederico o Grande, de quem se torna montada favorita durante a Guerra dos Sete Anos (só anos mais tarde soube das perferências heterodoxas do Imperador e percebeu a razão das pródigas carícias que este lhe fazia). Mas a vida de caudelaria, o convívio com intelectuais como o Cavalo de Voltaire e, sobretudo, a frequência de baias éguas de Alta Escola em breve arrefeceriam o seu ardor marcial avivando outros fogos. Após uma escandalosa relação com a égua persa de Sofia Wilhelmina de Bayreuth, que acabou num duelo em que matou o alazão de Giacomo Casanova, Cavalo de D. José teve que fugir apressadamente da Prussía. Ao receber a notícia da sua queda em desgraça, o seu velho pai, D. Cavallo Francisco José de D. João V, teve um desgosto tão grande que se recusou a trotar até ao fim da vida, passando directamente de um passo lento e pesaroso para um galope furioso.
Cavalo de D. José corre então a velha Europa frequentando as mais baixas estrebarias na companhia das piores bestas: cavalos de má raça, mulas de reputação duvidosa e grosseiros jumentos. Chega mesmo a passar algum tempo num cárcere de Nápoles e só a intervenção misericordiosa do seu primo Cavallo do Papa Bento XIV o livra do matadouro. São dessa época de devassidão equestre as desalinhadas tatuagens que mandou fazer no lombo e ventre e que podemos ver nesta gravura que vendeu para uma gazeta cor-de-rosa de Madrid a troco de uma ração de aveia.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - V















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A casa de arrumos e o caminho para o rio (quinta carta)


Foi no fim do Verão. Aqui nunca há Verão nem o cheiro das latadas, o pólen das margaridas a colar-se aos dedos, um velho a esmagar-nos o pulso com uma moeda das escuras «para chupar o ferrão da malina da vespa». Podia roubar da torre o Calendário Perpétuo – nunca soube bem do que efectivamente se trata – que ainda assim aqui nunca haveria Verão. Mesmo três vezes repetido no mesmo parágrafo: só a brancura dos lençóis e as salvas de inox com alfaias de gente de mãos bem tratadas e lá fora – do outro lado da janela embaciada – a mata de cedros da Boémia a prometer mais solavancos pelos carris adentro e um ou outro lobo a espreitar entre os troncos.
Perpétua era a amiga da Menina Júlia. Aquela casa de arrumos onde ambas guardavam os frascos vazios para a compota de marmelo do Outono e onde iam buscar diospiros para nos oferecer cobria-se de ceridónia [sic] no tempo quente. Era a panaceia que desde meninas colhiam, quebrando raminhos pelo talo para curarem as feridas uma da outra. «Não há maleita que medre com este leite amarelo, menino. Ora dê cá a mãozinha». E os arranhões das silvas desapareciam, assim como a chaga invisível das urtigas: um milagre da Menina Júlia e da Senhora Perpétua ali junto da casa dos arrumos.
O Fernanditinho não deixava a tia «botar-lhe o unguento»; tinha medo da tinta amarela a escorrer-lhe pelos braços, do toque morno na pele e do seu cheiro doce. «Não, não. Parece mijo de gato» e fugia pelo carreiro que levava dali à leira do rio.
Em caixas de madeira guardavam rolhas e meias velhas e deixavam-nos brincar com elas enquanto, sentadas num banco corrido, iam enxotando e matando os moscardos que lhes pousavam nos joelhos e nos lenços do regaço.
Na rua estreita e sinuosa de seixos e barrigas de cal e pedra que se descia até ao açude, moravam – desde sempre – uma em frente à outra. Uma janela em frente da outra (perto do murmúrio constante do moinho e da levada). Na rua estreita por onde as crianças corriam de toalhas a fazer de turbantes e sacos de plástico com sabão macaco para a barrela da tarde.
[parágrafo ilegível]
Há já muito tempo que não falavam. Viam quem passava, olhavam uma para a outra, perdiam-se nos olhos uma da outra e franziam as testas a revolverem as suas recordações de velhas.
Agora a Senhora Perpétua morreu e a janela da frente está fechada.


Comboio Cesky Budejovice/Praha, T.G.N.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - IV




















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O clarinete e a oliveira (quarta carta)

Aqui deixam-me ter a máquina e um caderno. A cama de ferro e lençóis brancos. Foi ontem. Vinha de lhe dar de comer a malga de sorgo e o Senhor Ezequiel, enquanto lambia os beiços, lembrou-se «dos dias felizes». Aconteciam entre Abril e Maio, antes do calor começar a matar as papoilas. Era ele quem me segurava a mão pelas escadas acima da torre sineira; a Maria Madalena, ainda por emprenhar, seguia-nos afoita e espantava os pombos da beira dos sinos. O Senhor Ezequiel tocava matinas e deixava-me ficar ali. «Depois já sabe, menino, bate com a porta, dá duas voltas à chave e deixa-mas no buraco da tranca». E coxeava pelas sombras abaixo com a gata a brincar-lhe entre as pernas.
Do alto do retiro fresco ouvia tudo: os pombos que regressavam à torre, o rio a tropeçar nos pedregulhos do açude, o Acácio da taberna na azáfama de guardar sachos e enxadas na carrinha abandonada e o Cauteleiro à sombra de uma oliveira do horto a tocar La Llorona no clarinete velho que já fora do pai.
[passagem riscada onde se pode ler:”(…) “Ai de mi llorona, Llorona de azul celeste “(…) “entrou uma cantora canadiana na Vinarna acompanhada de um clarinetista (…) sentou-se junto do palco (…) “Aunque la vida me custe, No lejarei de querer-te”(..)”]
Numa tarde em que me debrucei no anteparo da torre vi os dois irmãos (mais ou menos da minha idade); de cabelo rapado: o mais novo com um casaco do mais velho, o mais velho com uns sapatos de um primo que agora estava na tropa; «parecem dois macacos» dizia o Cauteleiro que tinha vindo tocar para a minha beira.
Às vezes dávamos-lhes de comer; eram iguais a nós em tudo menos nas papadas dos olhos e nas mãos (de velhos); faziam as melhores fisgas do adro. O pai tinha partido as duas pernas num dia longe num lugar longe; agora partia-lhes a cara quando mijavam na cama. Um de gravata o outro de laço, nos olhos um brilho trémulo de orgulho ferido: iam à primeira comunhão da irmã mais nova com roupa de empréstimo.
Às vezes ainda os vejo pelo avesso dos olhos quando me emprestam um lugar a um canto da sala para me vestir da idade adulta: um macaco



Cesky Budejovice/ Vinarna Voltaire, T.G.N.






Zirkadia

Zirkadia situa-se num vale profundo, mas a terra é plana e verdejante. No passado, os seus habitantes dedicavam-se à pastorícia. Hoje o país exporta petróleo e continua a produzir carne de ovelha e lã. A água mineral é outra fonte de receitas. O termalismo e o turismo a ela associado têm tornado famoso este pequeno e pacato país.
Zirkadia é governado por um Rei bondoso que colecciona selos e é activista dos direitos dos animais. Ao domingo reza ajoelhado na Catedral do Imaculado Coração de Maria, começada a construir no século XII e terminada no século XVIII, onde prevalece o estilo gótico.
Em Zirkádia bebe-se muita água mineral, cerveja feita a partir de cevada e vinho branco com baixa graduação alcoólica. É comum verem-se homens e mulheres de mão-dada nas ruas. As pessoas cumprimentam-se com quatro beijos na cara. As palavras «bom dia» e «obrigado» são empregadas com frequência. Os Zirkadianos não gostam que lhes falem em estrangeiro. Não há grandes artistas conhecidos, no passado ou no presente, que tenham nascido em Zirkadia, pois este país sempre foi provinciano e isolado. Além da água mineral ser, claramente, a bebida preferida dos seus habitantes.
A língua Zirkadiana não é indo-europeia. Os Zirkadianos não sabem se são caucasianos e recusam qualquer tipo de racismo. Durante o período pré-histórico desenvolveu-se um tipo de escrita baseado em traços e quadrados, que está ainda hoje por decifrar e que passou para o folclore pictórico local. O que aliás não é de estranhar num país onde as férias são passadas, em regra, em termas.
Zirkadia é habitada por mais de cinco milhões de pessoas e toda a gente é benvinda e bem integrada, mas é obrigada a gostar de água mineral e a passar alguns dias das férias em termas.
Zirkadia chama-se esta imagem e roubei-a a alguém que não sei o nome. Desconheço-lhe o significado original.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Descripção Analytica do Dito Cavalo

Prometi a mim mesmo que não falava no cavalo de D. José, mas como sou um joguete nas mãos do "Imp of Perversity" (1), cá vai:



O cavalo de D. José é um cavalo sereno, fleumático, quase diria nonchalante.
Levanta a pata como quem diz "tiguem-me daqui estes bichos" (vide infra "cobras"), com alguma repulsa mas absolutamente nenhum temor. o g em vez do r não é uma gralha; desde o regicídio, a que o nosso quadrúpede teve que assistir impávido, que adoptou este tique dos Incoyables (2). Já encomendou umas calças às riscas largas azuis e brancas mas não há maneira de lhas trazerem. Não há criadagem como antigamente.




(1): The Imp of the Perverse
(2): Les Icroyables

Cartas da Casa dos Cucos - III


Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O Senhor Policarpo ao Largo do Menino Deus (terceira carta)

O Senhor Policarpo tinha vindo de Lisboa para trabalhar na Casa do Povo. Era o homem mais elegante da vila, sempre de chapéu ao lado e fato de três peças, o sorriso meigo, um aceno de simpatia e às vezes um rebuçado para a tosse para oferecer a quem com ele se cruzasse ao fim da tarde no caminho do trabalho para a Casa do Rio (onde viera viver com a filha e o neto depois de enviuvar). O senhor Policarpo tinha uns olhos fundos, sempre marejados de índigo, e mal se lhe ouvia a voz quando o cumprimentávamos.
Em Lisboa – dizia-se – morara no Largo do Menino Deus e trabalhara no Senhor Roubado, numa retrosaria. Agora fazia a escrita da Casa do Povo.
Hoje passaria por um vulgar caso [adjectivo “clássico” riscado] de Dipsomania diagnosticado sem mais delongas.
À sexta-feira descia a rua até à praça e caminhava (sempre seguido pelo Mosto, o perdigueiro a quem o Cauteleiro dava de comer) até à entrada da taberna do Acácio (aquele que era clarinetista e foi a enterrar aqui há uns anos com a Banda atrás da carreta a tocar-lhe El día que me quieras). Descia os dois degraus, pousava o chapéu no balcão e – dir-se-ia que a medo – pedia a primeira taça, sempre a sorrir para um ponto fixo algures entre o calendário das Missões e a telefonia que o Acácio tinha exposta numa prateleira alta entre dois bonecos de barro: um Menino Jesus do Presépio e uma vaca sentada. Apoiava o cotovelo no tampo de mármore e ia bebendo e falando e bebendo e falando, num arrastado rosário de enunciados e invectivas dirigido a interlocutores que o Acácio não via algures entre a telefonia, a vaca e o Menino Jesus.
Depois, já de noite, subia os dois degraus rechaçando o amparo do taberneiro e a oferta de «ao menos um pastel de bacalhau para criar lastro» e ia descendo em direcção ao rio, perguntando sempre pelo Largo do Menino Deus.
Dizia-se que quando dava com a porta de casa gatinhava escada acima, ia acordar o neto mudo, e passava o resto da noite – até o Ezequiel tocar o sino – a mostrar-lhe um álbum de retratos que tinha sempre trancado numa mala de porão que guardava por debaixo da cama.
A minha mãe chamava-lhe «a mala dos segredos».

Cesky Budejovice/ Hotel da Estação Ferroviária, T.G.N.

Cartas da Casa dos Cucos - II

Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A hora do Terço e a corda-do-mato (segunda carta)


Pelo tempo em que a orla da serra se pintava de matizes dourados com laivos de fogo, a Menina Júlia (tão velha como o carvalho do adro) vinha de mãos estendidas oferecer-nos ouriços de castanhas e nozes tipo brobdingnag [sic] que trazia no grande bolso do avental negro. Um dia ensinou-nos a fazer uma corda-do-mato: muito grossa com um gancho de madeira na ponta aproveitado de uma ramada de limoeiro, que nós usávamos para brincar e ela para enlaçar molhos de fetos e restolho que carregava para o cimo da serra ou para dar de comer a uma vaca que tinha na leira do rio.
Mas para chegar outra vez esse tempo ainda faltava a época dos figos, a debulha do milho e as fogueiras altas a esconder da noite as nossas brincadeiras de «meninos das silvas».
[passagem rasurada]
Durante o dia, o rio despenhava-se lá dos cimos da serra, fintava as escarpas de xisto, galgava açudes de musgo e junquilho e vinha enrolar-se manso numa clareira bordejada de amieiros, flores do campo e silvados, mesmo junto à leira da Menina Júlia. Era o lugar onde espantávamos piratas e prometíamos paz aos apache.
Naquele Verão, a vaca da Menina Júlia esteve ali três dias inteiros a boiar; a carcaça inchada, presa nas raízes de um amieiro debruçado sobre o rio. Escondidos detrás do mato, atirávamos-lhe pedras à barriga. Mas, ao contrário das nossas expectativas, não era como um colchão de água que devolvesse os seixos em ricochete: as pedras perdiam-se no pêlo liso do dorso e afundavam-se no leito. O cheiro tornou-se insuportável e já ninguém tomava banho dali para baixo nos açudes da várzea.
A vaca tinha sido presa por uma pata traseira com uma corda-do-mato para não ir às amoras (por essa altura «já o diabo tinha passado por elas»). Caiu à água por um barranco da margem e o gancho prendeu-se na raiz.
Ninguém veio salvá-la porque o sobrinho da Menina Júlia – o Fernanditinho – a internara na véspera da queda «por causa de começar a rir na missa e a mijar-se durante a hora do Terço». Foram os bombeiros que levaram dali o bicho e limparam as águas.
E também ninguém estranhou quando a Guarda foi dar com o Fernanditinho pendurado num castanheiro da orla da serra com uma corda-do-mato a enlaçar-lhe por baixo dos braços o peito já meio estrangulado.

Comboio Krumlov/ Cesky Budejovice, T.G.N.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

O fim do mundo em cuecas

As minhas cuecas são confortáveis. São tão confortáveis que gosto de dormir em cuecas e em casa passeio em pelota só com elas vestido. Não fosse o frio e era capaz de sair para a rua em cuecas.
São bonitas as minhas cuecas. Estou com uns quilos a mais e inscrevi-me num ginásio. Aí está um sítio onde jamais pensaria em ir só de cuecas, porque há nos ginásios quem goste de cuecas e do que lá está dentro. Que incómodo!
As minhas cuecas são confortáveis e às vezes a minha vida parece um fim do mundo. A minha vida não é tampouco o fim do mundo em cuecas!
O que verdadeiramente me importa é estar confortável. Hoje e amanhã. Sempre. Nem que fossem de aço, as minhas cuecas.

domingo, 15 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - I


Nota de apresentação

Quando, muito recentemente, o meu amigo João Barbosa me sugeriu que o acompanhasse e ao Sérgio Carneiro no Cavalo de Dom José, ocorreu-me que, mais do que publicar textos da minha autoria, melhor e mais útil seria dar a conhecer os textos do nosso amigo comum Tiago Góis Naia (desaparecido em 1999 no Canal do Príncipe). Quase dez anos volvidos após o nosso encontro fugaz em Praga, considero ser já tempo de partilhar as pequenas histórias que habitam o caderno que por essa ocasião me ofereceu. A nota biográfica que se segue foi extraída de um folheto elaborado para o lançamento do seu ensaio Belchior e Galo Coxo, evento que não chegou a ocorrer em virtude de, por motivos que não vêem ao caso, ter sido inviabilizada a sua publicação.

Seguir-se-á a transcrição possível do Caderno 4: cartas da casa dos cucos.


Nota biográfica
Tiago Góis Naia (n. 1969-)

Nasceu em Coimbra em 1969 no dia em que Armstrong pisou a Lua. Licenciou-se em História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre 1995 e 1999 foi bolseiro de investigação da Fundação Baluarte (organização fundada em 1983 por oficiais do Exército na reserva) tendo, nesse âmbito, publicado artigos sobre o capítulo dedicado a El Rey Dom Duarte na História Genealógica do teatino António Caetano de Sousa, as viagens do médico José de Anchieta, e a travessia atlântica empreendida em 1958 numa pequena embarcação por José Rodrigues Belchior, Felismina Rosa e Eduardo Galo Coxo. Ao serviço da Fundação, viajou para Praga em 1998 onde, num concerto da cantora canadiana Edith Coeur Bleu no Malostranská Beseda conheceu Alexandre Sarrazola, a quem ofereceu o manuscrito de Caderno 4: cartas da casa dos cucos.
Numa visita de trabalho a Cracóvia, T. Góis Naia envolveu-se num aparatoso episódio de pancadaria à porta do Muzeum Czartorryskisch com o então vice-cônsul português em Praga (numa disputa pela posse do caderno de campo do explorador José de Anchieta), que conduziu ao seu despedimento compulsivo da Fundação Baluarte. Uma versão diferente dos acontecimentos associa a Fundação (hoje extinta) e a actividade dos seus bolseiros a um serviço clandestino de recolha de informações diplomáticas.
O poeta foi visto pela última vez por Aida Zacarias – uma criada muda do Conde da Folgosa – num fim de tarde de Outubro em 1999. Estava aparentemente embriagado e fingia caminhar sobre as águas do Vouga, junto ao Canal do Príncipe, perto de Aveiro. Desde então, é dado como desaparecido (embora haja quem garanta tê-lo visto numa esplanada sobranceira ao Tejo no Inverno de 2003, acompanhado por Edith Coeur Bleu).
É também o protagonista de Krumlov, romance autobiográfico publicado em 2001 pelas Edições Baluarte.


















Lilliput e o Senhor Ezequiel (primeira carta)

Naquele Verão, eu e o Senhor Ezequiel (sacristão de parco préstimo e homem pródigo em frases inacabadas e onomatopeias que aparentemente só ele e os animais entendiam) travámos uma sólida e duradoura amizade. Hoje tenho a pretensão de – no quadro conceptual do que a actual Psicopatologia Compreensiva designa por “reversibilidade fenomenológica” – compreender com alguma lucidez a prodigiosa sucessão de acontecimentos em que se veio a ancorar esta empatia recíproca. Porém, naquele tempo eu era um rapaz de nove anos de idade, o Senhor Ezequiel um homem de cinquenta, e ambos dedicávamos longas horas à companhia dos bichos.
Uma ocasião, estava eu no adro da igreja entretido na tarefa de construir com seixos de rio e pequenos paus de oliveira uma aldeia que copiara de uma ilustração d’ As Viagens de Gulliver, apareceu-me o Senhor Ezequiel sorrindo desdentado sob o sol das três horas daquela tarde de Agosto. Contou-me com escarninhos trejeitos que abandonara no cimo da serra uma saca de serapilheira muito bem atada na boca com um baraço de sisal. No seu interior deixara a gata prenhe que já ia na sétima ninhada, «uma gata brava que me dava conta dos ratos, uma Maria Madalena com bigodes». Limpou a testa suada e foi dormir sesta.
No dia seguinte encontrámo-nos à beira do tanque da rega. Era manhã muito cedo e o Senhor Ezequiel, depois de tocar o sino, viera para ali «ver o naufrágio»: um pacote de leite selado com uma mola da roupa cheio de ratos lá dentro. De olhos parados sobre o lodo e os nenúfares aguardava paciente e feliz a submersão iminente. «Porquê, menino? Agora já não há Maria Madalena para lhes dar caça».
No fim de Agosto inaugurei Lilliput ocupando-a com uma dúzia de lesmas que recolhera na fonte que ficava nas traseiras da torre sineira. A aldeia era fresca e os bichos rastejavam felizes pelos seus caminhos de xisto e habitavam os abrigos de seixos.
[passagem ilegível]
Na manhã seguinte, depois de tocar o sino, o Senhor Ezequiel demorou-se alguns instantes junto de Lilliput e foi recolher-se em casa (vi-o eu pela janela do meu quarto que dava para o adro). Foi sem surpresa que encontrei a aldeia arrasada, os seixos afastados para um lado e os seus minúsculos habitantes espetados na terra com as pequenas traves de ramo de oliveira.
Hoje o Senhor Ezequiel não se queixa das marcas que o baraço de sisal – o mesmo que um dia me ofereceu para brincar no adro – lhe deixa nos pulsos amarrados por detrás das costas ao poste do fundo do seu galinheiro. Quando – dia sim, dia não – lhe vou lá dar de comer, calha por vezes surpreendê-lo com um pinto ou um pescoço de galinha a encher-lhe a boca. Nessas ocasiões não o admoesto. Como ele próprio costumava dizer enquanto curtia as peles de raposa, ou quando o encontrava debruçado sobre o ventre escondido detrás do milho, «também não se deve privar um homem de tudo, menino».

Krumlov, T.G.N.



sábado, 14 de julho de 2007

O meu quarto

O meu quarto tem três janelas. Cada uma tem um bocado de rio. Uma está de frente para a cama e as outras estão de lado. Cada uma de seu lado. Não há luz que me falhe. Por cima da cama tenho um quadro, um Sagrado Coração. Não há luz que me falte.
Todas as noites ajoelho-me voltado para uma janela e rezo a olhar o céu. Sempre um bocado diferente, sempre com uma estrela em mente. O meu quarto tem três janelas.
Tenho telhados à frente, entre as janelas e o rio. Andorinhas, pardais, pombos e gaivotas do vidro ao azul do Tejo e do céu. Vejo roupa estendida, vejo as mulheres a estende-la e outras de gargantas abertas a chamar. Tenho um quarto com três janelas.
Todos os dias rezo, peço ajuda aos meus Santinhos. Amanhã não será dia de dívida. Amanhã não será dia de míngua. Amanhã terei a cama cheia e a barriga também. São de guilhotina as janelas e têm portadas verdes, as três janelas do quarto. Da cama, ao acordar, vejo quadros com a cor que Lisboa me quer dar.
Tenho três janelas no quarto, não há luz que me falhe. Sobre a cabeceira está um quadrinho, um Sagrado Coração, ao qual rezo de joelhos, para que a luz não me falte.