domingo, 15 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - I


Nota de apresentação

Quando, muito recentemente, o meu amigo João Barbosa me sugeriu que o acompanhasse e ao Sérgio Carneiro no Cavalo de Dom José, ocorreu-me que, mais do que publicar textos da minha autoria, melhor e mais útil seria dar a conhecer os textos do nosso amigo comum Tiago Góis Naia (desaparecido em 1999 no Canal do Príncipe). Quase dez anos volvidos após o nosso encontro fugaz em Praga, considero ser já tempo de partilhar as pequenas histórias que habitam o caderno que por essa ocasião me ofereceu. A nota biográfica que se segue foi extraída de um folheto elaborado para o lançamento do seu ensaio Belchior e Galo Coxo, evento que não chegou a ocorrer em virtude de, por motivos que não vêem ao caso, ter sido inviabilizada a sua publicação.

Seguir-se-á a transcrição possível do Caderno 4: cartas da casa dos cucos.


Nota biográfica
Tiago Góis Naia (n. 1969-)

Nasceu em Coimbra em 1969 no dia em que Armstrong pisou a Lua. Licenciou-se em História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre 1995 e 1999 foi bolseiro de investigação da Fundação Baluarte (organização fundada em 1983 por oficiais do Exército na reserva) tendo, nesse âmbito, publicado artigos sobre o capítulo dedicado a El Rey Dom Duarte na História Genealógica do teatino António Caetano de Sousa, as viagens do médico José de Anchieta, e a travessia atlântica empreendida em 1958 numa pequena embarcação por José Rodrigues Belchior, Felismina Rosa e Eduardo Galo Coxo. Ao serviço da Fundação, viajou para Praga em 1998 onde, num concerto da cantora canadiana Edith Coeur Bleu no Malostranská Beseda conheceu Alexandre Sarrazola, a quem ofereceu o manuscrito de Caderno 4: cartas da casa dos cucos.
Numa visita de trabalho a Cracóvia, T. Góis Naia envolveu-se num aparatoso episódio de pancadaria à porta do Muzeum Czartorryskisch com o então vice-cônsul português em Praga (numa disputa pela posse do caderno de campo do explorador José de Anchieta), que conduziu ao seu despedimento compulsivo da Fundação Baluarte. Uma versão diferente dos acontecimentos associa a Fundação (hoje extinta) e a actividade dos seus bolseiros a um serviço clandestino de recolha de informações diplomáticas.
O poeta foi visto pela última vez por Aida Zacarias – uma criada muda do Conde da Folgosa – num fim de tarde de Outubro em 1999. Estava aparentemente embriagado e fingia caminhar sobre as águas do Vouga, junto ao Canal do Príncipe, perto de Aveiro. Desde então, é dado como desaparecido (embora haja quem garanta tê-lo visto numa esplanada sobranceira ao Tejo no Inverno de 2003, acompanhado por Edith Coeur Bleu).
É também o protagonista de Krumlov, romance autobiográfico publicado em 2001 pelas Edições Baluarte.


















Lilliput e o Senhor Ezequiel (primeira carta)

Naquele Verão, eu e o Senhor Ezequiel (sacristão de parco préstimo e homem pródigo em frases inacabadas e onomatopeias que aparentemente só ele e os animais entendiam) travámos uma sólida e duradoura amizade. Hoje tenho a pretensão de – no quadro conceptual do que a actual Psicopatologia Compreensiva designa por “reversibilidade fenomenológica” – compreender com alguma lucidez a prodigiosa sucessão de acontecimentos em que se veio a ancorar esta empatia recíproca. Porém, naquele tempo eu era um rapaz de nove anos de idade, o Senhor Ezequiel um homem de cinquenta, e ambos dedicávamos longas horas à companhia dos bichos.
Uma ocasião, estava eu no adro da igreja entretido na tarefa de construir com seixos de rio e pequenos paus de oliveira uma aldeia que copiara de uma ilustração d’ As Viagens de Gulliver, apareceu-me o Senhor Ezequiel sorrindo desdentado sob o sol das três horas daquela tarde de Agosto. Contou-me com escarninhos trejeitos que abandonara no cimo da serra uma saca de serapilheira muito bem atada na boca com um baraço de sisal. No seu interior deixara a gata prenhe que já ia na sétima ninhada, «uma gata brava que me dava conta dos ratos, uma Maria Madalena com bigodes». Limpou a testa suada e foi dormir sesta.
No dia seguinte encontrámo-nos à beira do tanque da rega. Era manhã muito cedo e o Senhor Ezequiel, depois de tocar o sino, viera para ali «ver o naufrágio»: um pacote de leite selado com uma mola da roupa cheio de ratos lá dentro. De olhos parados sobre o lodo e os nenúfares aguardava paciente e feliz a submersão iminente. «Porquê, menino? Agora já não há Maria Madalena para lhes dar caça».
No fim de Agosto inaugurei Lilliput ocupando-a com uma dúzia de lesmas que recolhera na fonte que ficava nas traseiras da torre sineira. A aldeia era fresca e os bichos rastejavam felizes pelos seus caminhos de xisto e habitavam os abrigos de seixos.
[passagem ilegível]
Na manhã seguinte, depois de tocar o sino, o Senhor Ezequiel demorou-se alguns instantes junto de Lilliput e foi recolher-se em casa (vi-o eu pela janela do meu quarto que dava para o adro). Foi sem surpresa que encontrei a aldeia arrasada, os seixos afastados para um lado e os seus minúsculos habitantes espetados na terra com as pequenas traves de ramo de oliveira.
Hoje o Senhor Ezequiel não se queixa das marcas que o baraço de sisal – o mesmo que um dia me ofereceu para brincar no adro – lhe deixa nos pulsos amarrados por detrás das costas ao poste do fundo do seu galinheiro. Quando – dia sim, dia não – lhe vou lá dar de comer, calha por vezes surpreendê-lo com um pinto ou um pescoço de galinha a encher-lhe a boca. Nessas ocasiões não o admoesto. Como ele próprio costumava dizer enquanto curtia as peles de raposa, ou quando o encontrava debruçado sobre o ventre escondido detrás do milho, «também não se deve privar um homem de tudo, menino».

Krumlov, T.G.N.



Sem comentários: